Você alguma vez já parou para refletir sobre a finitude da vida? Talvez não, já que esse é um enorme tabu em nossa sociedade ocidental. Especialmente no Brasil, temos uma enorme dificuldade de falar sobre essa que é a única certeza da vida: a morte. Ela nos fascina ao mesmo tempo que nos aterroriza. É objeto de inspiração e ao mesmo tempo de angústia. O fim da vida aciona uma série de mecanismos psicológicos em nós, alguns tão dolorosos que evitamos tocar no assunto.  

Muitas vezes, nos sentimos ainda mais desconfortáveis quando estamos diante da dor de outra pessoa. Ao não saber como nos aproximar e o que dizer, acabamos nos esquivando ou dizendo frases prontas que pouco ajudam e, assim, seja para aqueles que vivem o luto da partida de uma pessoa amada ou os que vivem os últimos dias de sua jornada por aqui, é comum o relato de um certo sentimento de solidão nesse processo. Porém, silenciar a diversa gama de sentimentos e emoções que surgem pode tornar a travessia ainda mais dura e difícil para quem a vive.

Falar sobre a morte e o luto pode, no entanto, ser extremamente transformador e libertador.  Para quem vive este processo em primeira pessoa, encontrar espaços para conversar pode ajudar a elaborar emoções difíceis, aliviar o sofrimento e ressignificar esse marco na vida. Para quem a morte parece estar longe, a consciência da própria finitude pode ajudar a encontrar seu propósito, a valorizar o presente e a direcionar a atenção para o que realmente importa, trazendo muito bem-estar.  

Por isso, no mês em que honramos aqueles que se foram, acreditamos que vale a pena compreendermos um pouco mais sobre nossa relação com o tema e como transformá-lo em um aliado na nossa jornada pela existência. Esperamos com isso te ajudar a encontrar mais significado, conforto e acolhimento para o encontro com o inevitável. E se lágrimas surgirem ao longo do caminho, celebre-as, pois nada mais são do que a manifestação de um profundo amor pela vida.


Fundo no assunto
Nossa relação com a morte


O ser humano é o único animal que tem consciência da própria finitude. Ela incentiva nossas reflexões mais transcendentais e foi considerada “a musa da filosofia” pelo pensador alemão Schopenhauer, no século 19. Cada um de nós terá uma compreensão muito particular sobre ela e buscaremos nas tradições culturais, nas religiões e nos pensamentos filosóficos respostas para esse enorme mistério.   

Porém, um estudo inédito realizado pelo Studio Ideias, em 2018, mostrou nossa enorme dificuldade em pensar e conversar sobre o tema. Encomendada pela Sincep (Sindicato dos cemitérios e crematórios particulares do Brasil), a pesquisa buscou mapear a percepção dos brasileiros sobre assuntos que vão desde a prática de rituais fúnebres à liberdade que uma pessoa deve ter ou não para decidir sobre o fim da própria vida.  

O estudo revelou que 68% dos participantes não se sentem prontos para lidar com o fim da vida e palavras como “depressivo” e “mórbido” surgem para descrever a resistência em falar sobre isso. E, apesar de reconhecermos a importância de criamos espaços de conversa sobre o morrer, 57% acreditam que o assunto pertence à esfera da intimidade. Ou seja, não falamos e, quando falamos, é somente no círculo mais íntimo. 


Estes dados mostram como precisamos avançar na desconstrução deste tabu para que também possamos avançar nas discussões sobre cuidados paliativos, doação de órgãos, legado e até mesmo eutanásia. A falta desse debate coloca o Brasil como o 3º pior lugar do mundo para morrer no que diz respeito aos cuidados oferecidos às pessoas em situação de pré-morte. O levantamento contou com a análise de 181 pesquisadores de dados qualitativos e quantitativos de 81 países, e levou em consideração métricas como expectativa média de vida, gastos, acesso à saúde e a existência de campanhas de sensibilização com relação ao fim da vida.  

É fato que todos nós, em maior ou menor grau, tememos a morte. Esse sentimento é tão poderoso que influencia nosso comportamento, nossas relações, nosso juízo de valores, em quem votamos, nosso desejo de ser famoso e até como nos sentimos em relação a amamentação e vacinação, por exemplo. Mas, como colocou Gilberto Gil em sua canção, se olharmos de perto, nosso medo pode estar mais relacionado ao ato de morrer do que da própria morte. Isso porque enquanto a morte é um evento, morrer é um processo que pode levar dias, meses e até anos. “A morte é depois de mim, mas quem vai morrer sou eu”, segue a canção.  

Com o avanço da medicina, morremos cada vez menos de mortes repentinas e cada vez mais de mortes anunciadas. Ou seja, são doenças crônicas ou degenerativas que ameaçam a continuidade da vida. Quando essa comorbidade grave e incurável encontra uma pessoa, ela gera um impacto não só na dimensão física, mas na emocional, na familiar, na social e espiritual também. Ana Claudia Quintana, autora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver” e especialista em cuidados paliativos, nos conta neste Ted Talk a importância desses profissionais da saúde para aliviar o sofrimento que se faz presente na experiência do fim da vida, trazendo mais bem-estar e dignidade para quem está enfrentando. 

Ela afirma que há três tipos de pessoas nesta fase: aquelas que morrem lutando, as que morrem desistindo e as que tem a oportunidade de receber cuidados paliativos e morrem vivendo. Como AnaMi, que nos inspirou profundamente no recente documentário apoiado pelo Plenae “Quantos dias. Quantas noites”. Ela se tornou uma grande ativista dos cuidados paliativos no Brasil ao longo dos 12 anos que viveu após o diagnóstico de um câncer incurável.


Ao acompanhar por mais de 20 anos pessoas em fase terminal, Ana Claudia observou que, ao aliviar os sintomas que geram dor e sofrimento, essas pessoas têm a oportunidade de entrar em contato com a essência do ser humano: o estado de amorosidade. Assim, conseguem viver momentos de profunda alegria, perdoar erros passados, se reconciliar com pessoas amadas, agradecer e, principalmente, encontrar sentido a sua existência. 



Aos que se despedem de uma pessoa amada que passou para o plano espiritual, dá-se início uma dolorosa travessia pelo luto. Essa é, sem dúvida, uma jornada desafiadora e que será totalmente única para cada um. Todos nós, invariavelmente, passaremos por esta experiência algum dia e, como colocou Tom Almeida, fundador do movimento inFINITO, “quanto mais repertório tivermos sobre os lutos, mais toleráveis e transformadores eles serão”. 

O luto é um processo longo e não-linear. Apesar da teoria das 5 fases do luto da psiquiátrica Elisabeth Kübler-Ross (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação) ter ficado muito conhecida, na prática não há uma regra e, tampouco, uma finalização marcada. O luto é complexo, repleto de altos e baixos e, como afirma Luciana Mazzora, psicóloga e fundadora do Instituto de Psicologia 4 estações, “a elaboração do luto sempre se dá nesses dois movimentos: olhar para a perda, mas também seguir com a vida”. 



Nesse sentido, uma nova abordagem sobre os fenômenos presentes durante o luto tem encontrado fundamento tanto na pesquisa, como na prática clínica de apoio aos enlutados. O Modelo do Processo Dual defende que o luto é um processo dinâmico e sem fases, aproximando-se mais ao movimento de um pêndulo que, ora se orienta para a perda, ora para a restauração. Apesar de estarem inter-relacionados, eles não acontecem de forma simultânea e é a partir desta oscilação que a pessoa encontra autorregulação.  

E assim, compreendemos que o luto é um processo repleto de “tambéns”. A pessoa chora e também ri, tem desejo de isolamento e também de estar com pessoas, sente fadiga e também vontade de incluir um novo hobby na vida. O luto revela tanto a força de nossos vínculos como nossa capacidade de adaptação. Ele precisa ser respeitado em seu tempo, sentido e acolhido em todas as suas expressões para que possa ressignificar a vida que segue em frente, uma vez tocada de forma crônica e permanente pela morte.  E, para isso, as relações e a rede de apoio são fundamentais


Uma parte difícil no processo da morte é que, com ela, uma série de decisões bastante delicadas precisam ser tomadas. O cenário ideal é que a pessoa morra bem velhinha, com tudo planejado com antecedência: o que fazer com o corpo, como se dará os rituais de despedida, testamento, etc. Mas, sabemos que o ideal muitas vezes está longe do real. Seja porque a morte chegou de forma repentina, seja porque nossa resistência em pensar sobre isso dificulte a tomada de decisões incômodas como: quero ser sepultado ou cremado? Serei doador de órgãos? Com será feita a divisão de bens caso haja?  


Nesta matéria, elencamos seis dicas de como dar início neste diálogo com nossos pais. A primeira é pesquisar cada ponto específico e, dependendo da abertura, abordar um de cada vez. Um exemplo é a questão da doação de órgãos. O Brasil é o 2º país que mais realiza transplantes no mundo, ficando atrás somente do Estados Unidos, e ainda assim possui 59 mil pessoas na fila esperando por um órgão.  Porém, no caso de doadores pós-morte (somente aqueles que apresentam morte encefálica), em 2022 mais de 45% das famílias não concordaram com a doação. Este dado fez com que o Ministério da Saúde lançasse o Dia Nacional da Doação de Órgãos para a conscientização e incentivo da prática. Portanto, é importante também definir e expressar o desejo da doação para os familiares ainda em vida, pois eles é quem serão os responsáveis pela decisão.  


O que dizem por aí
A morte como professora


Mas, não é preciso estar com uma doença terminal ou perder alguém próximo para que a morte promova profundos aprendizados. Muitas escolas de pensamento trazem o meditar sobre a impermanência e a finitude como ferramenta de autoconhecimento e aumento da qualidade de vida. Isso porque a morte tem a beleza de nos fazer dar imenso valor a vida aqui e agora, impactando a forma como nos relacionamos com o mundo e com nós mesmos. 

Os estoicos, por exemplo, praticavam uma técnica chamada Praemeditatio Malorum, que envolvia visualizações de situações adversas, incluindo a própria morte e a de pessoas queridas, como recurso tanto para ampliar a apreciação e contentamento com a vida, como para se preparar mentalmente para o enfrentamento de desafios e tragédias inevitáveis. Como comentamos neste Tema da Vez, o objetivo não é ficar se lamentando, mas sim trazer novas perspectivas e lembrar que nada está garantido, nem mesmo a vida (memento mori), nos levando a repensar nossas ações e prioridades. 


Os budistas também possuem uma profunda relação com a morte em seu cotidiano. Para eles, esta é a maior de todas as iniciações espirituais e precisa ser vivida com atenção plena, pois neste momento é apresentada a oportunidade da libertação do ciclo de reencarnação. Assim, eles se preparam para este momento praticando constantemente o Maranassati Sutta, a técnica de contemplação da morte que foi instituída pelo próprio Buda. Durante essa meditação, os praticantes buscam compreender se existem pensamentos e ações que, caso eles morram agora, possam atrapalhar sua libertação. Mas, não precisamos nos tornar budistas para usufruir dos benefícios desta prática. Neste blog você encontrará algumas orientações simples para cultivar a consciência da finitude de diferentes formas.  


Sem dúvida, contemplar a morte é algo difícil de praticar, sendo recomendado para quem já tem alguma experiência com meditação e não sofre de nenhum problema psicológico. Uma forma mais leve de adentrar no tema é participar de um Death Café, um novo movimento que busca “aumentar a consciência sobre a finitude e ajudar as pessoas a aproveitarem melhor suas vidas (finitas)”. A partir de encontros regados de café e bolo, promovem “um jeito fácil de falar de coisas difíceis”.  

Criado em 2011 pelo sociólogo e antropólogo suíço Bernard Crettaz, os Death Cafés hoje acontecem em todo mundo, inclusive no Brasil, e buscam criar uma atmosfera informal e não ameaçadora, onde todos os participantes se sintam confortáveis para expor dúvidas, angústias e trocar experiências. Autodenominado de franquia social, qualquer pessoa pode organizar um Death Café seguindo alguns princípios básicos do movimento: não ter fins lucrativos, ausência de uma agenda pré-definida, não se apresentar como um espaço de terapia, nem “vender ideias” e, claro, ter café e bolo.  


O retorno ao eterno 


Nossa passagem pela vida é sem dúvida um evento breve. No curso da existência, mesmo 100 anos passam em um piscar de olhos. E se popularmente dizemos que a primeira impressão é a que fica, a morte nos faz entender que, na verdade, a última impressão é eterna. O que você faria se soubesse que esta é sua última dança? O que você diria se soubesse que estas sãos suas últimas palavras?  

Não temos dúvida que todas as células do seu corpo sentiriam o pulsar da vida e o desejo de dar o melhor de si. Assim, nos despedimos nesse Tema da Vez desejando que você possa sempre ter estas perguntas por perto, pois um dia de fato será a última vez que você verá o pôr do sol, a última vez que tocará os pés na areia, que irá abraçar aquele amigo, que dirá eu te amo. Acreditamos que essa consciência poderá trazer um novo estado de presença a cada momento, com mais contentamento e gratidão por cada encontro, cada evento, cada oportunidade de estar assim: vivo.