Para Inspirar

Daniela Lerario em "Uma expedição que mudou minha vida"

Na décima primeira temporada do Podcast Plenae, inspire-se a mudar o mundo com a trajetória de ativismo de Daniela Lerário.

27 de Março de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]
Daniela Lerario: Um dos trechos mais marcantes da travessia foi quando a gente passou pela "Mancha de lixo do Pacífico", que é uma região que hoje já é bem mais explorada e conhecida, mas naquela época era ainda um mistério. 

Eu tinha na cabeça a ideia de uma "ilha de lixo" - que na verdade nunca existiu. Parece mais uma sopa com um monte de objeto flutuante. Pente, escova de dente, madeira, uma roda com a calota e tudo, várias embalagens de plástico flexível - uma tinha data de 1980, imagina.  Em alguns lugares, a quantidade era bem maior, e a gente podia ver aquelas coisas que ainda não afundaram …. A água que a gente coletava pra amostragem - parecia normal, até olhar de pertinho. Depois ela era viscosa, tinha vários pedacinhos de plástico colorido. [trilha sonora] Geyze Diniz: Guiada por sua intuição, Daniela Lerario, há 11 anos, embarcou em uma expedição que mudaria sua relação com o consumo e com a natureza. Foram mais de 40 dias no mar, 12 tripulantes e um único propósito: ajudar o meio ambiente. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. [trilha sonora] Daniela Lerario: Em 2012, eu me juntei a 12 pessoas de 7 países, numa expedição atrás dos resíduos do tsunami que atingiu o Japão, um ano antes. Essa foi a maior aventura da minha vida, uma viagem de quase 4 meses, sendo 42 dias num veleiro.  Eu soube dessa jornada pelo blog de um capitão norte-americano chamado Charles Moore. Esse cara é um ativista ambiental e velejador que há muitos anos trabalha com proteção e conservação dos oceanos, e fez uma convocação para PANGEA Expedition.  No dia 11 de março de 2011, um terremoto de 9 graus de magnitude no fundo do mar, seguido por um maremoto, arrastou milhares e milhares de toneladas de resíduos da costa do Japão.

 

Eu já trabalhava com gestão de resíduos desde os tempos de estagiária, na faculdade de biologia. E, quando eu vi esse anúncio, foi aquele “pá”. Sem pensar muito, eu decidi me candidatar pra expedição. Daí mandei um vídeo explicando o quanto sou apaixonada pela natureza, pelo oceano e por uma boa aventura. Eu contei o meu histórico profissional sobre resíduos e disse que eu sempre adorei essa coisa de tentar achar solução pra problemas difíceis.  Eu falei também sobre as minhas habilidades. Eu limpo muito bem, gosto de música boa, tenho histórias legais para contar, dificilmente tô de mau humor e eu gosto muito de conhecer gente nova.  Depois de algumas semanas eles me responderam falando: 

“Legal, você tá dentro. Só que você precisa subsidiar a viagem. Se vira”. Puts! A expedição custava uns 7 mil reais, mais a passagem de ida pra Tóquio e a de volta pro Havaí. Ou seja, eu não tinha essa grana. E o maior problema não era nem esse.  [trilha sonora] Fazia menos de dois anos que eu estava num ótimo emprego, numa empresa bem grande com um trabalho bem remunerado. Quando eu recebi a resposta, eu pensei: “Que que eu faço agora? Como é que eu vou sair de um emprego que tá super bem pra embarcar numa aventura dessas, e ainda pagar por isso?”  [trilha sonora] Só que, por mais que parecesse uma loucura, não tinha nenhuma dúvida sobre a decisão que eu estava tomando. Eu tenho uma conexão engraçada e bem forte com a minha intuição. Eu sempre sei o que fazer, e aí, eu coloco energia em como vou fazer acontecer. Até hoje eu tenho o costume de me perguntar o quanto que uma escolha afeta positivamente a mim e a minha família, e se ela conecta com a minha essência e com o que eu percebo de valor. A resposta sempre vem. [trilha sonora] Eu digeri a informação por alguns dias antes de tomar coragem de entrar na sala do VP da empresa na época e dar a notícia pra ele. Ele deve ter me achado completamente maluca. Eu lembro dele olhar para mim e falar: “Me conta, o que que é que você vai fazer nesse navio?”  Eu pensava: “Não é um navio, é um veleiro”. Aí ele disse com um ar meio de reprovação “Olha, menina, se eu tivesse aceitado qualquer coisa que aparecesse na minha vida, eu não estava sentado aqui”. Eu tinha uma certeza: que a única coisa que eu não queria tá era sentada naquela cadeira. Ele até tentou me convencer. Ele disse que poderia guardar meu lugar por alguns meses: “Tá bom, de quanto tempo você precisa? Dois meses? Três, quatro?”. Tipo, vai lá, e faz o seu capricho e volta. Mas eu não podia me comprometer, vai saber o que que tinha lá fora reservado pra mim. [trilha sonora] Numa decisão bem controversa - pros outros - eu juntei as economias, passei o chapéu e fui pro Japão. Chegando lá, eu não conhecia ninguém. A gente foi se conhecer em Tóquio, num alojamento do Corpo de Bombeiros que a expedição tinha cedido pra gente. Eu era a única brasileira no grupo de 12 pessoas.  Na primeira noite, a gente jantou com o Charles Moore, aquele norte-americano que convocou a expedição. Esse cara foi a primeira pessoa que cruzou com a mancha de lixo do Pacífico. Isso foi lá em 1997, quando ele estava participando de uma regata e fez uma mudança de trajeto para cortar o caminho de Los Angeles pro Havaí.  Daí pra frente ele começou a estudar essa região de acúmulo de resíduos. E hoje em dia, a gente sabe bem mais sobre esse tema. Essa mancha, ela ocupa uma área do tamanho do estado do Texas. Para comparar, maior que o estado de Minas Gerais, imagina! E ela não é a única, são outras quatro destas no planeta, talvez até cinco. [trilha sonora] Esses "sistemas de correntes oceânicas rotatórias", que são conhecidos como giros oceânicos, são dois no Oceano Atlântico (Norte e Sul), dois no Pacífico (Norte e Sul) e um no Índico. E eles afetam diretamente o clima global e os ecossistemas marinhos. 

É como se eles fossem grandes ralos, e é lá que vão parar todos os resíduos que, de alguma maneira, caem no mar. São várias as fontes: os rios poluídos, o esgoto mal tratado, um lixão perto da costa, redes de pesca, o lixo que é descartado pelos navios e, claro, as embalagens de uso único. Tipo aquela garrafinha de água que as pessoas deixam na areia. [trilha sonora]  Os resíduos plásticos tão entrando no oceano numa taxa de cerca de 11 milhões de toneladas por ano, prejudicando a vida marinha e os habitats. O plástico é um material feito pra durar e dura. O problema é que a gente deixa ele ir parar no mar. 

Essas zonas de confluência concentram pequenos fragmentos que a gente chama de microplásticos. O plástico vai se quebrando com a ação da maré, dos raios solares e do vento. São pedacinhos bem minúsculos que acabam entrando na cadeia alimentar através dos animais menores - os fitoplânctons, por exemplo - e sobem até os maiores - como os camarões ou peixes - que no final são consumidos por nós. Tinha um cientista, o NIkolai Maximenko, que acompanhava por satélite pra onde iam os resíduos do tsunami do Japão - e eles estavam se movendo em direção à grande mancha de lixo do Pacífico. E era exatamente pra lá que a gente também ia. [trilha sonora] Mas, antes de embarcar no veleiro, a gente fez um período longo de trabalho voluntário pelo Japão. A ideia era mergulhar na cultura local, entender um pouco da lógica da expedição e compreender que os resíduos que a gente ia monitorar vinham de famílias. Foram mais de 18 mil vidas perdidas naquela tragédia. A gente tinha que entrar naquele lugar com muito respeito. [trilha sonora] O líder científico da nossa viagem era o Marcus Eriksen, um ativista fundador do 5 Gyres Institute, uma ONG norte-americana super conhecida no tema de poluição de plástico. Com a liderança dele e alguns outros tripulantes, a gente se voluntariou em Fukushima. Esse nome deve ser familiar pra você. É aquela província onde o tsunami causou o maior desastre nuclear desde a explosão em Chernobyl, na Ucrânia, em 85. Meu pai ficou super preocupado quando eu contei que ia pra lá. Eu lembro dele falando: “Filha, o mundo inteiro tá indo para longe de Fukushima. O que que você vai fazer lá? Não faz essa loucura!” E eu, acho que tão jovem na época, nem pensei no perigo da radioatividade. Eles deram pra gente máscara, bota e uma roupinha especial e lá fomos nós. [trilha sonora] O senso de comunidade dos japoneses é de dar orgulho. Eu fiquei surpresa de encontrar vários japoneses que tinham tirado férias, saído das suas cidades pra ajudar a reconstruir o país de uma forma anônima e voluntária. Eles estavam ali porque era o certo a se fazer. Eu e o Marcus, a gente trabalhou na reconstrução de um jardim da casa de uma senhora que perdeu toda família no tsunami. A gente cuidou do canteiro dela e depois sentou no tatame da sala pra tomar um chá. Ela contou em japonês, meio com sinais, que viu aquela onda gigante vindo em direção da casa e depois perdeu toda sua família. Ela tinha uma origem rural e dava pra perceber que as mãos dela eram de gente que trabalha na terra, sabe? O Marcos pediu permissão e fez um molde de gesso da mão dela. E foi um momento super marcante pra mim, porque essa peça acabou acompanhando a gente durante toda a expedição, representando a conexão da nossa viagem com a vida humana. 


[trilha sonora] Depois dessa etapa, a gente embarcou no que era pra mim o auge da experiência: a travessia. O veleiro Sea Dragon, ou Dragão do Mar, tinha 78 pés, que era mais ou menos 23 metros. Que é grande, mas, mesmo assim, sem nenhuma privacidade pra 12 pessoas. A partir daí, era todo mundo tripulante. A gente dormia em redes enfileiradas e sobrepostas em três camadas, assim como se fosse um triliche. O barco tinha dois banheiros, mas só um tava funcionando. E a bomba de água doce deu problema desde a primeira semana, então a gente não tomava banho e tinha que cozinhar com água do mar pra economizar. Durante toda a expedição, a gente não teve um telefonema e pouquíssima comunicação com o mundo externo. Era um estado de presença absoluta, em que ninguém ficava parado. Todo mundo trabalhava em turnos, eram equipes de 3 pessoas, limpando, cozinhando, fazendo o trabalho científico de coleta e avistamento de resíduos. Várias vezes por dia, a gente lançava no mar um equipamento que parece uma raia com uma bocona bem grande de metal e um saco de rede. Depois, a gente despejava essa amostra numa peneira e fazia uma análise. A gente fez isso 93 vezes durante as 7.000 milhas percorridas. E mais de 90% das amostras tinham fragmentos plásticos. Eu também passei muitas horas olhando pro mar, em busca de algum resíduo flutuante. E a gente tinha que anotar tudo o que aparecia em uma prancheta com as fichas de resíduos com o maior detalhe possível. 

[trilha sonora]

Depois de mais de 40 dias no mar, eu tinha dois caminhos. Ou eu botava tudo aquilo debaixo de uma pedra e fingia que não era comigo ou eu encarava a realidade e pensava: bom, o que que eu posso fazer pra mudar?

[trilha sonora]

Onze anos depois, eu sei que a expedição mudou completamente a minha vida, muito mais do que eu imaginava que ela ia mudar. No lado pessoal, a minha relação com o consumo se transformou completamente. Eu nunca mais comprei caneta com tampa, por exemplo, porque a tampa é um resíduo tão pequeno que provavelmente vai parar no mar. A bexiga, por exemplo, é muito legal, mas nas festas de aniversário dos meus filhos não tem de jeito nenhum. Embalagem de sachê, aquelas pequenininhas, esquece, você nunca vai me ver usando. E se eu tiver que usar eu vou tá com o coração bem apertadinho, com peso na consciência. Todo mundo brinca que ir pro supermercado comigo, por exemplo, é um inferno, porque eu me preocupo tanto com o conteúdo quanto com a embalagem. Eu analiso cada um pra optar por aquelas que têm maior chance de serem efetivamente recicladas no lugar onde eu vivo. São medidas pequenas que entraram na nossa rotina, mas claro que sozinhas elas não vão ser suficientes. Por isso, com a maturidade, eu saí um pouco desse lugar de culpa e procuro focar a minha energia nas ações que realmente vão fazer uma mudança, tipo influenciar políticas públicas.

[trilha sonora]

Do ponto de vista profissional, a expedição pivotou a minha carreira. Ela trouxe oportunidades que rendem até hoje pra mim. De lá pra cá, me tornei sócia de uma empresa, da qual fui CEO por 3 anos. Desde 2018, eu me dedico a um desafio um pouquinho maior, que é o das mudanças climáticas. Eu recebo o tempo inteiro notícias terríveis, estudos cada vez piores sobre as projeções pro futuro da humanidade.


É difícil estar nessa posição. Mas, se eu pensar nisso, eu não saio da cama. Então, eu lido com isso com um otimismo teimoso, que a gente gosta de falar. Eu sou a esperança encarnada. Não é uma visão ingênua, mas de acreditar que, se a gente aprender a colaborar de forma realmente inclusiva e se a gente der pras pessoas o mínimo de oportunidade, é possível reverter esta situação. 

Eu acredito muito na ciência e na capacidade do ser humano de inovar. A gente nunca teve tanto dado disponível e a gente já sabe exatamente o que a gente precisa fazer. É possível um manguezal saudável e produtivo, é possível restaurar, preservar e proteger a integridade e a resiliência do nosso oceano para as gerações futuras Eu sei que nem todo mundo pensa como eu. Mas a gente precisa de mais diálogo, porque nas discussões polarizadas todo mundo perde.  

O meio ambiente somos nós. Nós somos a natureza. Nessa corrida, todo mundo ganha ou todo mundo perde. Ou a gente é parte da solução ou a gente vai continuar sendo parte do problema.

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

[trilha sonora]

Compartilhar:


Para Inspirar

Adriana e Giovanna Araújo em "Caminhando juntas"

Na décima primeira temporada do Podcast Plenae, emocione-se com a cumplicidade e parceria de Adriana e Giovanna Araujo.

3 de Abril de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]


Adriana Araújo: Quanto mais valente eu tentava me mostrar pra minha filha, mais forte ela se exigia ser. E quanto mais madura e tranquila eu a via, mais serenidade eu buscava oferecer. A gente se abasteceu dessa troca. Esse pacto conduziu a nossa vida por um caminho de amor e companheirismo que eu nunca havia experimentado. Mas o custo foi alto. Nós duas amadurecemos à força. Uma abriu mão de parte da juventude. A outra, da infância. E as inseguranças e fragilidades ocultas que estavam ali inevitavelmente apareceriam.


[trilha sonora]


Geyze Diniz: Ainda na gravidez, Adriana Araújo descobriu que sua filha, Giovanna, nasceria com uma síndrome rara. Foram 10 cirurgias para que Giovanna pudesse caminhar com as próprias pernas, e para Adriana foi um trabalho contínuo de entender suas emoções, força e vulnerabilidade. 


Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.


[trilha sonora]


Adriana Araújo: No dia 7 de outubro de 1997, eu acordei com um novo papel no mundo, o de mãe. Ainda na maternidade, com a minha bebê dormindo no bercinho de acrílico ao meu lado, eu amanheci num choro incontrolável. 


Até hoje é difícil definir esse choro. Quando eu volto àquele momento pra encontrar as nuances de cada sentimento que havia ali, eu vejo um choro de decepção comigo mesma. De inconformidade e frustração por não ter conseguido dar à minha menina o formato que o mundo classifica como normal. Um choro de choque, de enxergar as diferenças anunciadas no borrão do ultrassom, agora tangíveis. Um choro de não fazer ideia se a minha menina poderia andar e correr. De não saber como seria a vida da criança frágil e de pernas tortas que dormia tranquila no berço da maternidade. Um choro de intuição de que seria difícil, muito difícil de que julgamentos e preconceitos inevitavelmente surgiriam. Um choro de quem envelheceu uma década em horas, de quem sabia que dali pra frente tudo seria diferente.


[trilha sonora]

A Giovanna nasceu com uma doença chamada hemimelia fibular, é uma deformidade ortopédica, congênita e rara, que afeta 7 bebês a cada 20 milhões. Em termos bem simples, a minha filha não tem o osso de sustentação da perna direita, a fíbula. Ela veio ao mundo com mais algumas complicações: o pé esquerdo torto e ausência de alguns dedos nos pés e na mão direita.


Eu volto no tempo e entendo as razões de cada choro na maternidade. Mas algumas daquelas lágrimas eu não choraria de novo. As lágrimas da culpa eu tentaria não chorar, ainda que elas ainda existam no meu coração, 25 anos depois.


[trilha sonora]


Giovanna Araújo: Não teve um momento específico em que eu percebi que era diferente das outras pessoas. Pra mim, era simplesmente um fato da vida, até porque na infância eu nem ligava muito pra minha imagem. Às vezes, os colegas perguntavam por que a minha perna e os meus dedos eram daquele jeito, daí eu explicava. Mas eu nunca deixei de ser aceita no grupo por causa disso. Sempre tive muitos amigos, sempre me encaixei nos lugares onde eu frequentei. Eu sei que outras pessoas podem sofrer bullying por ter uma diferença, mas essa não foi a minha experiência. 


A minha aparência atípica virou uma questão pra mim quando eu cheguei na adolescência. Eu me incomodei com as cicatrizes nas minhas pernas, por causa de tantas cirurgias. Me incomodei por ter dificuldade de usar salto. Mas, no geral, eu acho que eu ligo tanto pra aparência quanto qualquer pessoa da minha faixa etária. Na minha geração, as pessoas se comparam demais com as outras, por causa das redes sociais. 


Eu fui percebendo que, na verdade, as pessoas não estão preocupadas com os outros. Elas estão pensando em si, nas próprias vidas. Com o tempo, a minha insegurança passou. 


[trilha sonora]


Adriana Araújo: Em 2020, eu publiquei um livro sobre a minha história como mãe da Giovanna. Mas antes de ser um livro, foi uma conversa comigo mesma. Eu precisava olhar pelo retrovisor pra processar as emoções e visitar as memórias dessa jornada. A caminhada nem sempre foi fácil. E, durante muitos anos, eu não tive tempo pra parar e refletir sobre os percalços que nós enfrentamos. 


Aí, eu comecei a escrever a história na forma de e-mails que eu enviava pra mim mesma. E à medida que os textos foram ganhando corpo, surgiu um desejo de transformá-los num livro familiar. Eu pensava em fazer uma encadernação bonita e dar de presente pra Giovanna, pra minha família e, especialmente, pros médicos que foram essenciais na vida da minha filha. 


Um dia, eu tava no salão de beleza, fazendo a raiz do cabelo, quando eu comecei a pensar em um desses médicos, que a gente apelidou de doutor Marceneiro. Eu senti uma necessidade muito forte de expressar em palavras a minha gratidão por ele. Peguei o celular e comecei a escrever no bloco de notas. Enquanto eu digitava, eu chorava de emoção. Aí, a cabeleireira me perguntava: "Tá tudo bem?”. “Sim, tá tudo bem”, eu dizia pra ela. Eu só precisava colocar os meus sentimentos no papel.

Eu terminei aquele capítulo do doutor Marceneiro e tive certeza que gostaria de transformar aquelas memórias num livro. E não só pra família, mas pra quem quisesse ler. Quando eu compartilhei esse desejo com a Giovanna, ela, a princípio, não curtiu muito a ideia.


[trilha sonora]


Giovanna Araújo: Eu e minha mãe temos personalidades muito diferentes. Ela é comunicativa, extrovertida. Eu já sou bem reservada e só costumo me abrir com pessoas mais próximas. Por isso, eu achava meio estranha a ideia de contar a nossa história pra qualquer um. Mas a minha mãe queria muito publicar esse livro. E quando ela coloca uma ideia na cabeça, ninguém tira. Ela insistiu pra eu ler o manuscrito. Eu enrolei, enrolei. Quando eu finalmente peguei o calhamaço, terminei em 24 horas. Eu imaginava que ela fosse escrever um relato factual, ao pé da letra, sobre a nossa vida. Só que ela criou uma peça literária, poética. Ficou muito bonito.

Esse foi um dos fatores que me levaram a concordar com a publicação da obra. Mas o principal era a ideia de ajudar outras pessoas em situação parecida com a nossa. Existem muitas mães de crianças que nascem com alguma diferença e que poderiam se enxergar na nossa experiência. De fato, depois que o livro foi publicado, várias mulheres entraram em contato com a gente. Elas disseram que, de alguma forma, se sentiram representadas na nossa experiência. 


[trilha sonora]


Adriana Araújo: Logo no começo do livro, eu aviso: “Essa não é uma história de vítimas nem de heroínas. É apenas a história de duas meninas que caminham juntas”.


Eu não fui educada pelos meus pais para me vitimizar. Eu não gosto dessa posição, não acho que é isso que te faz seguir em frente. Essa compreensão ficou ainda mais forte depois que a Giovanna nasceu. Muitas pessoas olhavam pra ela e falavam: “Ah, coitadinha, tadinha”. É uma expressão cultural, que o povo fala sem nem perceber o quão danosa ela é. E aí, virou uma batalha pessoal ensinar a minha filha a não se vitimizar, nem deixar que as pessoas a tratem com essa visão.


Mas, na outra ponta, mães de crianças com alguma deficiência também costumam ser colocadas no papel de heroínas, uma posição que até pode fazer bem pro ego. O fato de eu trabalhar em televisão pode reforçar esse rótulo. Só que, na verdade, não existem heróis. Na tentativa de dar conta da minha missão, eu botei uma armadura, peguei uma espada na mão e fui em frente com toda a força que eu tinha. Mas isso não significa que eu fui forte o tempo todo. Eu fraquejei muitas vezes, tive momentos de fragilidade, de tristeza, de medo. De muito medo. 


[trilha sonora]


Giovanna Araújo: Em alguns momentos eu admito que pensei: “Por que eu? A minha vida teria sido um pouco mais fácil se eu não tivesse precisado das cirurgias”. Eu poderia me vitimizar e passar o resto da vida me lamentando por não ter nascido igual a maioria da população. Mas esse pensamento não me levaria a lugar nenhum. E tem o outro lado da moeda. Eu sou uma pessoa de muitos privilégios e oportunidades. Se colocar na balança, as coisas boas pesam muito mais do que as ruins. Definitivamente, eu não sou uma coitada.

E eu também não sou uma heroína por ter enfrentado tantos desafios. Às vezes a gente vê uma pessoa com uma trajetória difícil e pensa: “Eu nunca conseguiria passar por isso”. Mas como a gente pode saber, se não tá na pele do outro? Tem situações que ou você enfrenta ou você enfrenta. Cada um faz o melhor que pode quando tem um problema.


[trilha sonora]


Adriana Araújo:  Desmistificar o papel da heroína não foi só pros leitores do livro, foi pra nós duas também. Eu me tornei mãe aos 25 anos, enquanto tava construindo uma carreira na televisão. E a Giovanna intuitivamente, ela percebeu que o desafio era enorme e colaborava muito, muitas vezes com silêncio. Ela nunca manifestou revolta. Nunca perguntou por que era diferente. Nunca reclamou dos remédios, das cirurgias, dos cortes, das suturas, das agulhadas. Já eu esperava birra, irritabilidade, nervosismo. Recebi serenidade e silêncio.


Durante muito tempo, eu entendi esse silêncio como um presente. Porque ele facilitava a minha vida. Mas o silêncio também pode ser uma armadilha bem perigosa. Eu escolhi mostrar à minha filha o que, naquele momento, eu achava que seria o melhor de mim: a coragem, a confiança, o otimismo, a fé. E conforme ela foi crescendo, eu percebi que a Giovanna só viu a mãe forte. Como que uma pessoa vai lidar com as próprias fragilidades, se o modelo que ela tem é quase de perfeição?

O livro também teve essa função de mostrar pra minha filha que ela vai ter muitos momentos de dúvida, de fraqueza, de medo em várias fases da vida, na juventude, na vida adulta, na vida profissional, na vida amorosa.

Giovanna Araújo: Quando você é pequeno, tem uma visão idealizada dos pais. Conforme cresce, percebe que eles também têm momentos de dúvida e fragilidade, que são pessoas com as mesmas dificuldades de qualquer outra. Eu ainda vejo a minha mãe como uma mulher forte e determinada, mas agora de uma maneira um pouco mais equilibrada.

Uma das minhas maiores surpresas ao ler o livro foi descobrir o sentimento de culpa que ela carrega por eu ter nascido com uma diferença. Eu achei até engraçado, porque isso nunca tinha me passado pela cabeça. Eu acredito bastante em Deus,  acho que Ele cria a gente do jeito que a gente tem que ser criado. Não tem nada a ver ela pensar que é culpa dela, mas às vezes todo mundo tem umas ideias meio irracionais.

[trilha sonora]


Adriana Araújo:  O livro também serviu como um auto abraço. Foi uma maneira de dizer para mim mesma: “Ok, eu poderia ter feito algumas coisas de outra maneira, os bastidores poderiam ter sido apresentados a minha filha mais cedo. Mas eu entreguei o que eu dava conta”. Eu cheguei aos 50 anos com a Giovanna em uma das melhores faculdades de medicina do país e eu tenho um baita orgulho disso. Tá faltando só um ano para ela se formar e é uma felicidade pra mim vê-la encaminhada e bem. Eu ofereci aquilo que foi possível, que eu tinha condições de oferecer naquele momento.


As mães são muito mistificadas, como se a maternidade fosse um momento sagrado, santificado. Quando uma grávida descobre que o filho vai ter uma deficiência, uma diferença física ou neurológica, ela é vista como se ela tivesse falhado onde nunca poderia ter falhado. Expor a nossa história tem também a função de mostrar que a perfeição não existe. A trajetória de todas as mães e filhos, de todos os pais e filhos terá os seus desafios, independentemente de ter ou não uma condição de saúde nessa história. O livro é uma declaração de amor à Giovanna e à nossa jornada, incluindo as dificuldades que fizeram parte das nossas vidas. Ele tem o propósito de abraçar a nossa história como ela é, com cicatrizes, para seguirmos juntas na nossa caminhada.

[trilha sonora]


Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


[trilha sonora]

Compartilhar:


Inscreva-se na nossa Newsletter!

Inscreva-se na nossa Newsletter!


Seu encontro marcado todo mês com muito bem-estar e qualidade de vida!

Grau Plenae

Para empresas
Utilizamos cookies com base em nossos interesses legítimos, para melhorar o desempenho do site, analisar como você interage com ele, personalizar o conteúdo que você recebe e medir a eficácia de nossos anúncios. Caso queira saber mais sobre os cookies que utilizamos, por favor acesse nossa Política de Privacidade.
Quero Saber Mais