Para Inspirar

Luciane Zaimoski em "A maior dor de uma mãe"

Conheça a história de uma mãe que transformou o luto em luta, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

12 de Novembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] 

Luciane Zaimoski: Eu não achava que depressão era frescura. Então quando o meu filho recebeu esse diagnóstico, eu entendi que era uma doença que precisava de tratamento. Mas, mesmo assim, na minha cabeça, se o Samuel se esforçasse um pouco, ele resolveria esse problema.

Se ele saísse de casa pra passear, por exemplo, ficaria melhor. Foi só na primeira tentativa de suicídio do meu filho, que eu entendi
, de verdade, que melhorar da depressão não é uma questão de força de vontade. 
 

[trilha sonora] 

Geyze Diniz: Desde que recebeu o diagnóstico de depressão de seu filho, Luciane Zaimoski se dedicou a cuidar dele e a entender mais sobre a doença. Infelizmente seu esforço não evitou que Samuel tirasse sua própria vida, mas Luciane transformou sua dor em uma causa pessoal e hoje, ajuda pessoas para que elas não passem pelo que ela passou. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 
 
 

[trilha sonora] 

Luciane Zaimoski: Eu tenho três filhos: a Carol, o Samuel e o Tiago. O do meio, foi planejado. Foi tipo: O pai do Samuel e eu olhamos no calendário e falamos: é agora! 

[trilha sonora] 

Desde pequenininho, o Samuel se destacou tanto em casa como na escola. Ele era muito inteligente. No primeiro ano dele na creche, ele desenhava tão bem e aprendia tão rápido, que as professoras falavam assim: “Nossa, quando ele for pra educação infantil, vai ter que fazer uma avaliação. Ele provavelmente vai passar na frente das outras crianças”. Elas achavam que ele era superdotado. Dali pra frente, o Samuel sempre foi considerado o melhor aluno da sala. 

[trilha sonora] 

O Samuel tinha alguns amigos mais chegados, mas não fazia o tipo popular. Ele era mais introvertido e isso se acentuou a partir dos 15 anos. Naquela idade em que os jovens começam a sair, namorar, festinha, ele fez o movimento inverso. Ficou mais caseiro do que já era. Eu estranhei, mas achei que fosse pelo jeito tímido dele. O Samuel era doce, sensível… E fechado.  

[trilha sonora] 

No ensino médio, pela primeira vez, as notas dele começaram a cair. Os desenhos do Samuel se tornaram sombrios. É como se ele tivesse deixado de desenhar o sol pra desenhar a escuridão. Ele passou a não dormir, a não tomar banho, a não ter energia para ir para escola. Eu fui várias vezes ao colégio, mas ninguém notou nada anormal no comportamento dele.

Cheguei até a ouvir de uma professora que
o meu filho fazia parte da geração mimimi. Ela disse que ele não precisava de psicóloga, e sim de trabalhar, já que ele não queria estudar. Eu não concordei com ela. Tinha alguma coisa estranha. 
 

Chegou um momento que eu falei: “Filho, eu acho que você precisa de ajuda. Vamos procurar uma psicóloga?” Ele concordou.

Eu participei de algumas sessões da terapia e questionei a mudança de comportamento do Samuel. Mas a psicóloga dizia que nunca tinha notado nada anormal. Ela falava: “Se eu perceber que ele
está correndo algum risco, eu te conto. Mas, fica tranquila, porque tá tudo dentro do esperado pra idade dele”.
 

[trilha sonora] 

Com a terapia, o Samuel começou a conversar mais comigo. A gente falava sobre sexo, sobre droga e sobre outros assuntos considerados tabu. Mesmo assim, era um papo mais superficial, eu diria. Meu filho nunca me contou sobre as angústias que ele sentia de verdade. Por que ele andava tão triste?  

[trilha sonora] 

Depois de um ano e oito meses, ele não quis mais continuar com a terapia. A psicóloga achou que ele estava bem e deu alta. Só que aí veio a pandemia e o Samuel piorou muito. Ele começou a se mutilar e a se queimar. Eu desconfiei quando vi ele de calça e blusa num dia muito quente. Fui conversar com ele de maneira tranquila, sem que parecesse cobrança ou briga. Eu perguntava: “Tem alguma coisa errada aí, né, meu filho? Vamos conversar?” Daí ele me mostrava as cicatrizes.
 
 

Ele passou a ter crises de ansiedade também. As primeiras causavam uma sensação de falta de ar. Daí ele começou a ter espasmos, como se fossem ataques epiléticos. Eu procurei um neurologista e o Samuel fez uma bateria de exames. Só que os resultados deram todos normais. O meu filho foi encaminhado pra um psiquiatra e com provável diagnóstico de depressão 

[trilha sonora] 

Uns dias depois que o Samuel iniciou o tratamento com antidepressivo, ele tentou tirar a própria vida. Ele tinha acabado de começar a estudar na faculdade e a trabalhar na prefeitura de Curitiba. Foi no emprego que ele se machucou. O meu filho foi levado pra uma unidade de atendimento médico e, de lá, transferido pra um hospital psiquiátrico.
 
 

Eu fiquei sem chão. Eu era muito ignorante sobre a depressão. Não tinha nenhum caso anterior na família. E eu nunca tinha convivido com alguém que tivesse a doença. Nunca tinha nem sequer lido a respeito. Foi a partir da tentativa de suicídio do Samuel, que eu comecei a estudar sobre o assunto.  

[trilha sonora] 

Antes, eu achava que se o meu filho tivesse amigos alegres, se fosse à igreja comigo, se saísse mais, ele resolveria o problema dele. Eu não sabia que a doença causava um sofrimento tão profundo na pessoa. O meu filho ficou 48 dias internado no hospital psiquiátrico. No começo, o Samuel também concordou com a internação. Eu me enchi de esperança nesse período.

Achei que ele sairia curado. Mas foi o contrário. Depois de uns 20 dias, meu filho só chorava durante as visitas. 
O psiquiatra do hospital me explicou que, na realidade, o Samuel tinha transtorno bipolar. Até hoje, eu não tenho certeza sobre o verdadeiro diagnóstico.  

[trilha sonora] 

Dentro da clínica, o meu filho, que era um doce de pessoa, se tornou agressivo. Ele se revoltava com o tratamento e chegou a ser amarrado. Depois que ele saiu da clínica, me contou os horrores que ele viveu lá dentro. Ele não dormia, porque tinha medo de ser atacado por pacientes com registros criminais. Eu praticamente larguei o trabalho pra me dedicar ao meu filho. Eu dormia com ele, às vezes segurando a sua mão, pra que ele não fizesse nada contra a própria vida.  

[trilha sonora] 

Quando fez um mês que ele estava em casa, ele pediu pra voltar pro trabalho e pra faculdade. Ele realmente parecia melhor. A gente chegou até a comentar que o antidepressivo estava fazendo efeito. Mal eu sabia que a felicidade era porque ele tinha descoberto uma forma de encerrar a dor absurda que ele sentia.

No dia 2
2 de agosto de 2022, eu ainda lembro da última vez que ouvi a voz do Samuel: “Tchau mãe. indo trabalhar. Te amo”. Algumas horas depois, eu recebi uma ligação com alguém dizendo que ele tinha se machucado no trabalho
. Quando eu cheguei lá, não me deixaram ver o Samuel.

Um enfermeiro me falou: “Mãe, faz 37 minutos que a gente tá tentando reanimar o seu filho”. A minha vista sumiu. Eu perdi o chão e desmaiei. De repente, acordei com alguém me chamando: “Lu, Lu, vamo
s, o Samuel voltou. Ele tá indo pro hospital”.
 Os batimentos cardíacos tinham voltado, mas a atividade no cérebro, não.

Três dias depois, um médico me chamou numa sala, junto com toda a família, e deu o diagnóstico de morte cerebral. Eu sou uma mulher de fé e até o último minuto eu acreditei que um milagre traria o meu filho de volta. Mas o milagre que eu esperei veio de outra forma. 
 

[trilha sonora] 

No momento em que eu recebi a notícia da morte do meu filho, alguém recebeu uma ligação para receber vida. Nós doamos todos os órgãos possíveis do Samuel. Com isso, algumas pessoas receberam a esperança de viver. Mais de 500 pessoas foram ao velório e ao enterro. Eu fazia questão de contar pra todas, principalmente pros jovens, a verdade, para que de repente essa tragédia não acontecesse de novo.

Um amigo dele me contou que o Samuel já tinha tentado tirar a própria vida pelo menos mais uma vez. E eu nem tinha ficado sabendo.
 Um dia depois do enterro, algumas pessoas vieram na minha casa. A gente estava numa roda de conversa e eu falei: “Quantas mães ainda vão chorar por um filho que cometeu suicídio? Quantas pessoas ainda vão tirar a própria vida por falta de informação? E se a gente criasse uma ONG que alcançasse pessoas com depressão e os familiares dessas pessoas?”.

Assim, nasceu o Instituto Samuel Caetano.
 Logo depois que o Samuel foi enterrado, começou a campanha do Setembro Amarelo, dedicada à prevenção do suicídio. A Câmara Municipal de Colombo, uma cidade perto de Curitiba, estava fazendo um evento sobre isso. Eu fui convidada pra ir e dei o meu depoimento. 

[trilha sonora] 

Depois desse evento, a notícia se espalhou e pessoas que eu nem conhecia começaram a me procurar. A gente criou um grupo no WhatsApp e o projeto do instituto foi crescendo. Eu comecei a virar referência pros outros. Era assim: “Lu, uma amiga minha acabou de perder a filha e precisa de ajuda”. Ou: “Fulano tá com depressão”.

E assim eu fui fortalecendo outras mães e ajudando jovens com a doença. O suicídio acontece não porque a pessoa quer tirar a própria vida. Na realidade, é uma saída pra uma dor que a pessoa suporta mais sentir.
 

[trilha sonora] 

Atualmente, o Instituto Samuel Caetano tem cerca de 51 voluntários que prestam atendimento gratuito pra quem precisa. A gente faz ações em praças, pistas de skate, parques, ruas. Fazemos um trabalho de acolhimento para quem precisa, desde um abraço até uma conversa individual. 

Eu dedico a maior parte do meu tempo ao instituto, sem ganhar nada por isso. Nós temos dois projetos em andamento. O Projeto Girassol atua no ambiente escolar, da educação infantil até a universidade. Recentemente, nós demos palestra sobre saúde mental pra 800 alunos de uma escola na periferia de Curitiba. Já o Projeto Life, que ainda está em fase de discussão, prevê apresentação de música, teatro, dança.

A ideia é ter um cantinho da conversa, onde especialistas acolhem e encaminham pra tratamento se houver necessidade. Tudo de forma gratuita.
 O Instituto Samuel Caetano ainda não possui espaço físico. Mas eu sonho com uma sede espaçosa para acolher e tratar os pacientes de forma humanizada. Seria um lugar mais parecido com uma casa do que uma clínica. Quem tá doente precisa receber escuta sem julgamento, uma coisa que muita gente não encontra na própria família.  

[trilha sonora] 

Na minha experiência de dor, nasceu a vontade de ajudar o próximo com amor. O Samuel se foi, mas a vida continua. Eu tenho tantos outros filhos pra cuidar. A Carol, o Tiago e tantos filhos e filhas que nasceram de outras mães e que necessitam de acolhimento. O nosso mundo precisa de pessoas dispostas a doar alegria e esperança ao próximo. 

[trilha sonora] 

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. 

[trilha sonora] 

Compartilhar:


Para Inspirar

Simone Lehwess Mozzilli em "Ajudei uma criança e ela salvou a minha vida"

O quinto episódio da décima quinta temporada do Podcast Plenae é da publicitária Simone Mozzilli, representando o pilar Propósito

28 de Abril de 2024



[trilha sonora]

Simone Mozzilli: Quando eu cheguei careca no hospital, uma criança me perguntou: “Você raspou o cabelo pra ficar igual a gente?”. Eu respondi: “Não, agora a gente é igual! Eu fiquei tanto com vocês que eu peguei câncer” (brincadeira).

Eu sentia que a minha cabeça raspada, ela não incomodava as crianças. Com elas, eu me sentia super à vontade pra compartilhar tudo o que eu estava sentindo. Em algumas situações eu pude até falar que eu estava com muito medo de morrer. Muitos adultos não conseguem lidar com isso.

[trilha sonora]

Geyze Diniz: A publicitária Simone Mozzilli foi pega de surpresa quando foi retirar um cisto e descobriu que estava com câncer, assim como as crianças que ela atendia em seu trabalho voluntário. Ao se tornar paciente como elas, Simone pôde identificar a falta de informação e empatia que sofriam e criou o instituto Beabá, para compartilhar informações de maneira clara e objetiva sobre doenças e tratamentos. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]

Simone Mozzilli: Quando eu comecei a fazer trabalho voluntário, eu dava muitos foras. Eu visitava uma casa de apoio a crianças com câncer. E elas vinham de várias partes do Brasil pra fazer tratamento, elas ficavam morando com um acompanhante, que geralmente era a mãe.

E meu trabalho era ir, brincar com as crianças, conversar, às vezes eu dava uma carona pra um ou outro até o hospital. E um dia eu vi uma adolescente barrigudinha e perguntei: “É menino ou menina?” E ela respondeu: “Tumor de fígado”. Eu falava coisas que, hoje, eu sei que são absurdas, tipo: “Se você pensar positivo, você vai ficar bem”.

Eu era uma jovem publicitária, dona de uma produtora que tinha vários clientes grandes. Então, eu achava que eu sabia tudo. Aos poucos, eu fui aprendendo o que falar, o que não falar. E os melhores professores que eu tive foram as crianças. Uma dessas crianças salvou a minha vida.

[trilha sonora]

Eu conheci a Ana Luiza no hospital. Ela tinha 7 anos e tinha diagnóstico de rabdomiossarcoma, é um tipo de tumor que se forma nos músculos esqueléticos. A Ana Luiza, ela precisava de doação de sangue. E eu tentei doar, mas eu nunca consegui, porque eu sempre fui super magrinha. Daí eu decidi criar um site pra ajudar, chamado “Força, leucócitos”, e daí ele estimulava as pessoas a doarem plaquetas. O site viralizou, até a Ivete Sangalo compartilhou e foi uma das maiores doações de sangue que o hospital já recebeu.

Eu fiquei amiga da Ana Luiza e de toda família. Então todos os dias eu ia pro hospital visitá-la. Ana Luiza se tratou, entrou em remissão, e os próximos exames seriam nos meses seguintes. Então, como a família era de Manaus, eles decidiram passar esse tempo em São Paulo. E a gente aproveitou pra passear!

Eu levava a Ana Luiza para aniversário de crianças, a gente passou o dia no sítio de uma amiga, a gente foi andar a cavalo no Jockey Club, a gente passou no lançamento do livro de um outro amigo, a gente foi até ao jogo do Corinthians, mas eu preciso dizer que ela era Galo. Nós ficamos muito próximas.

A Ana Luiza começou a me ensinar um monte de coisas. Então, quando a gente saia, a gente via a reação de várias pessoas: algumas curiosas, outras com olhar de pena, algumas pessoas se afastavam porque ela estava careca, porque ela usava máscara ... Lembrando que a gente estava anos longe de uma pandemia.

Mas a Ana Luiza, ela não se fazia de coitada. Pelo contrário, ela conseguia rir da situação. Um dia, a gente visitou a cozinha de uma loja de brigadeiros. E óbvio que ela não precisou colocar touca, porque ela estava careca. Então, eu até entrei na pegada e falei: “Tá vendo, tem suas vantagens”.

[trilha sonora]

A Ana Luiza me impressionou muito, principalmente pelo conhecimento que ela tinha de todo o tratamento e a naturalidade que ela falava da doença. Ela sabia de tudo: ela sabia o nome das medicações, o protocolo do que ela ia fazer, qual parte do corpo ela ia operar...
 
Em uma das conversas, eu contei pra ela que eu tinha um cisto no ovário. Eu tinha descoberto um ano e pouco antes, num exame de rotina, e segui acompanhando. Os cinco médicos que eu fui diziam que aquele cisto não era nada, mas mesmo assim eu morria de medo. E se fosse câncer?

Um dia, a Ana Luiza me perguntou: “Você não vai tirar isso?” E eu falei: “Não, eu tenho medo. Eu nunca operei, nunca dei ponto, nunca me internei, nunca fiquei num hospital”. E ela respondeu: “Eu estou tirando metástase da cabeça e você não tira um cisto?”

[trilha sonora]

O câncer da Ana Luiza, infelizmente, voltou. Um pouco antes dela morrer, ela parou de enxergar, porque a doença atingiu a visão. Um dia ela acordou sem enxergar nada, mas mesmo assim, ela continuava conversando com a gente e até fazendo a gente rir.

[trilha sonora]

Um dos momentos mais tristes e mais bonitos que eu vivi foi quando a Carol, mãe dela, que estava na UTI começou a contar como é que eram os seus bisavós, pra quando ela morresse ela encontrasse alguém conhecido.

[trilha sonora]

Depois que a Ana Luiza morreu, os pais decidiram abrir um instituto pra ajudar as crianças de Manaus a terem as mesmas oportunidades que a Ana Luiza teve quando veio pra São Paulo. E eles me chamaram pra ser a diretora de marketing desse instituto. Ele foi inaugurado no dia 7 de outubro de 2011 lá em Manaus. E eu decidi que eu ia tirar o cisto uma semana depois, no dia 14 de outubro.

O tempo aproximado da cirurgia era em torno de 40 minutos. Eu ia tirar um cisto, e no máximo se precisasse, um ovário, eu ia voltar pro quarto e teria alta no mesmo dia. Só que, quando eu acordei da operação, 10 horas depois, eu pensei: “Alguma coisa deu errado, porque eu tô na UTI”. E eu estava na mesma UTI que eu ficava com a Ana Luiza. Eu chamei a enfermeira e perguntei: “Câncer?” E ela confirmou. Daí eu pedi: “Você pode chamar meus pais?”. E ela falou: “Tá fora do horário de visita”.

Hoje eu aprendi: família não é visita! Aí eu pedi pra enfermeira segurar a minha mão até eu dormir. Eu acordei no quarto, e eu não tinha duas trompas, dois ovários, o útero, pedaços do peritônio e eu tava sem 51 gânglios, não dá nem pra dizer que foi uma boa ideia.

Tudo isso foi para análise e na volta, até o líquido que banhava os órgãos já tinha câncer. Aos 34 anos, eu tinha sido diagnosticada com câncer, metástase e os gânglios comprometidos. Naquele momento, eu não era uma voluntária que ajudava crianças com câncer, agora eu era também uma paciente. E essa nova perspectiva mudou tudo

[trilha sonora]

Eu sempre falava pras crianças não darem Google, então eu fui procurar as informações em um lugar seguro - que eu imaginei que tivessem informações acessíveis e adequadas – que eram os sites dos hospitais. A informação que eu encontrei é que eu tinha um tumor ginecológico que era o mais agressivo, com menores chance de cura. E que, naquele estadiamento, a chance de eu ficar viva nos próximos 5 anos girava em torno de 20%.

Eu fui percebendo como as informações não ajudavam o paciente. Como você vai engajar uma pessoa num tratamento com uma comunicação dessa? Isso vai fazer a gente procurar por tratamentos milagrosos. E eu até fui, mas quando começaram a me pedir pra beber xixi, aí eu achei que eu não ia me curar e foquei no tratamento correto, com as quimioterapias. Ainda bem!

[trilha sonora]

Durante meus procedimentos, eu ia apavorada, mas daí eu comecei a fotografar e mandar pras crianças: olha, tô na tomografia, olha, olha como é a minha ressonância... E o que que aconteceu? As crianças começaram a enviar as fotos, os vídeos e contar sobre os procedimentos delas.

A gente acha que a criança não entende, que ela não tem noção do que ela tá passando. Mas muitas vezes, em busca de proteção, os próprios pais acabam não contando a verdade. E aí eu ouvia bastante dessas crianças: “Ai, eu tô em um hospital que tem câncer no nome, mas meus pais falam que eu vim aqui tratar uma gripe. Eu sei o que eu tenho, eu sei que eu tenho câncer. E eu não posso contar que eu sei.”

[trilha sonora]

Quando a gente tá em tratamento, a gente perde muito da nossa autonomia, principalmente as crianças. Qualquer escolha que a gente pode fazer, dá uma sensação muito boa de bem-estar, de controle. Só do profissional perguntar qual braço que eu quero que seja puncionado, já é uma alegria enorme. Quando eu era voluntária, eu vivia perguntando pras crianças qual peruca elas queriam.

Essa coisa, sabe, de publicitário que busca um produto e uma solução pra cada situação. Mas quando chegou a minha vez, eu odiava peruca. Ela esquentava, ela coçava, ela pinicava, era o maior incomodo pra mim. Minha mãe pedia várias vezes para eu colocar peruca, porque as pessoas ficavam olhando pra mim na rua. Aí, eu entendi que, na verdade, naquele momento, não era eu que queria a peruca, mas eram as pessoas que estavam ao meu redor. E tudo isso eu ia percebendo e anotando.

[trilha sonora]

O meu tratamento durou seis, sete meses. Nesse tempo, eu continuava fazendo trabalho voluntário. Os médicos diziam que as crianças que entendiam o que estava acontecendo, elas se engajavam mais no tratamento. E depois que a gente conversava e eu explicava o porquê de algumas coisas, como por exemplo, quando o cabelo caía, elas apontavam pra cabeça e diziam: “Olha, o medicamento tá funcionando”.

Daí, os profissionais começaram a me pedir: “Si, chegou uma família nova, você pode vir aqui conversar?” Chegou um ponto, que eu ficava meio período na minha produtora, meio período no hospital. Até que não deu mais pra conciliar, e a diretora do hospital na época falou: “Você não pode sair daqui.” E aí, a gente pensou em abrir algo focado exclusivamente em informação.

[trilha sonora]

Eu fechei a produtora e a gente fundou o Beaba, um instituto dedicado a informar de maneira clara, objetiva e otimista sobre doenças e tratamentos, principalmente oncologia pediátrica. Normalmente, quem faz informação da saúde são os profissionais de saúde, publicitários, jornalistas. Você até fala que aquela informação é centrada no paciente, só que o paciente só aprova, no máximo, o conteúdo final. E a gente resolveu colocar o paciente no processo todo, do início ao fim.

Convidamos as crianças pra participar e elas toparam na hora. Elas falam as explicações que elas não entendem, as dúvidas que têm, o que pode melhorar. E isso tudo tira a gente da posição de passividade e nos coloca numa posição de atividade. Então, vamos de um sujeito passivo a um agente transformador.

Dessas conversas, saiu nosso primeiro material, que é o Beaba do Câncer. É um guia ilustrado que tem termos mais comuns do ambiente oncológico. Ele foi criado por pacientes, familiares, profissionais da saúde e é distribuído gratuitamente pra crianças e adolescentes em tratamento.

Atualmente o guia tem 164 termos, e a gente explica o que é cada um, por exemplo: o que é hemácia, biópsia, vômito. Muitos termos foram pedidos pelas crianças, por exemplo, o Zé amputou a perna e não tinha o termo, e aí ele me cobrou: cadê amputação!? Agora tá lá.

[trilha sonora]

É muito emocionante, a gente recebe relatos diários do material, de crianças que aprenderam a ler com o guia, de famílias não alfabetizadas que usam as ilustrações pra entender, de crianças que levam pra escola pra poder explicar para os coleguinhas o que que elas estão passando. E é claro, os profissionais da saúde, que usam o material no dia a dia.

Hoje o guia tá em mais de 200 hospitais do Brasil, tem guia em aldeia indígena, em comunidade ribeirinha, em bibliotecas de cidades pequenas. Por baixo, mais de 1 milhão de pessoas já foram impactadas. E só não é um número maior porque a gente não tem financeiro pra isso. A gente já recebeu pedidos e enviou guias pra África, países da América Latina, Europa, até hospitais do Japão já pediram e receberam. 

Há algumas semanas, a gente fez reunião com uma instituição que trata crianças com câncer na Ucrânia. E eles pediram pra traduzir o material pra ucraniano, porque por conta da guerra, algumas crianças de lá têm ido tratar em outros países e eles não falam a língua delas. Então o guia seria incrível pra elas levarem junto.

[trilha sonora]

Esse ano, por enquanto, a gente ainda não vai conseguir imprimir os guias, por falta de dinheiro. O que a gente vai fazer por enquanto é tentar uma versão online. A gente sempre resistiu a versão online, porque muitas famílias ainda não têm acesso à internet. E geralmente as famílias que mais precisam de informação, são as que menos têm esse acesso.

Toda a nossa comunicação, ela é pensada pra melhorar a vida das pessoas. Uma vez eu falei que eu tinha vencido o câncer, e a mãe de uma das crianças mais queridas me respondeu que eu tinha vencido, mas que a filha dela tinha perdido. E daí eu fiquei bem mal com isso. Acho que nosso bem-estar não pode provocar mal-estar nas outras pessoas.

Então a gente ressignificou, principalmente porque, mesmo fora de tratamento há mais de 10 anos eu não sou considerada uma paciente curada.  Então, o otimismo do Beaba, ele tem muito a ver com qualidade de vida e não com cura ou ausência de doença, porque isso limitaria o nosso uso, imagina uma linguagem que só serve pra crianças e adolescentes com possibilidade de cura!? Isso não é justo.

[trilha sonora]

O Beaba não é meu. Eu acho até que ele pode ter sido um produto de egoísmo pra eu ter um material para eu me sentir mais segura, mas o Beaba é de todo mundo, todo mundo que construiu e constrói todos os dias. É muito gratificante nosso trabalho, mas ainda acho que a informação não é valorizada como ela deveria.

Isso até melhorou um pouco com a Covid, porque as pessoas começaram a ver que informação salva vidas. Então, antes da vacina, o que salvou nossas vidas? As informações, que falavam pra gente se higienizar, usar máscara, fazer testes e até ficar afastados de pessoas contaminadas.

Na oncologia, o tratamento medicamentoso é supervalorizado. Então, você toma o comprimido, você recebe a quimioterapia, mas, se você não sabe que se tiver febre você precisa correr pro hospital, você pode morrer. Se você não sabe como tomar aquele medicamento, você pode jogar fora milhões gastos pela indústria para desenvolver uma fórmula, só que muitas vezes essa fórmula é desenvolvida e não tem material acessível e adequado para os pacientes e familiares entenderem como usarem esse medicamento.

Aí, se a gente usa errado, ele pode não ter efeito esperado e ainda pode classificar aquele produto como não tão bom como deveria. E o que eu espero!? Meu sonho é ter um prédio e que cada andar seja dedicado a uma doença. Porque as doenças, elas não vão deixar de existir, mas a gente pode melhorar o tratamento de todas com informação. Isso não vale só pro câncer, isso vale para tudo.

[trilha sonora]

Vários amigos me perguntam todos os dias: “Por que você fica com essas crianças, se muitas delas vão morrer?” E eu falo: “Eu não posso mudar o destino delas. O que eu posso fazer é melhorar o dia a dia delas”. Às vezes, você acha que tá ajudando alguém, e no fundo, é a outra pessoa que tá te ajudando. Eu fui ajudar a Ana Luiza, e ela salvou minha vida.

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

[trilha sonora]

Compartilhar:


Inscreva-se na nossa Newsletter!

Inscreva-se na nossa Newsletter!


Seu encontro marcado todo mês com muito bem-estar e qualidade de vida!

Grau Plenae

Para empresas
Utilizamos cookies com base em nossos interesses legítimos, para melhorar o desempenho do site, analisar como você interage com ele, personalizar o conteúdo que você recebe e medir a eficácia de nossos anúncios. Caso queira saber mais sobre os cookies que utilizamos, por favor acesse nossa Política de Privacidade.
Quero Saber Mais