Para Inspirar

Thais Renovatto em "Aids é uma coisa, HIV é outra"

O terceiro episódio da décima terceira temporada do Podcast Plenae é com Thais Renovatto, representando o pilar Corpo!

1 de Outubro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Thais Renovatto: Quando eu soube que tinha HIV, eu me isolei por um tempo pra tentar digerir a notícia da maneira mais pragmática possível. Quais eram as opções que eu tinha? Eu podia encher a cara de droga pra tentar esquecer a minha condição. Podia acabar com a minha vida e, por tabela, com a da minha família. Podia ficar revoltada e sair passando o vírus para todo mundo. Ou eu podia me cuidar.

[trilha sonora]

Geyze Diniz:
Aos 31 anos, a vida de Thais Renovatto virou de cabeça para baixo. Ela descobriu de repente que tinha contraído o vírus da AIDS de um namorado. Apesar do medo inicial ela se cercou de bons profissionais de saúde, começou o tratamento médico e soube que era possível levar uma vida normal. Hoje ela é casada, tem dois filhos saudáveis e se dedica a combater o preconceito contra o HIV. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]

Thais Renovatto:
Era uma quinta-feira, em São Paulo, no ano de 2013. Eu tinha trabalhado o dia inteiro e, à noite, saí pra conhecer uma balada nova na rua Augusta. Eu fui com uns amigos, mas uma hora me separei da turma pra pegar uma bebida no bar. O lugar tava lotado e eu tive que disputar espaço no balcão. Até que um cara que também tava por ali puxou papo comigo: “Cheio, né?”, ele falou.

Era um tipo comum e simpático. Eu adoro conhecer pessoas e tenho facilidade pra fazer amizades. Pra mim, um encontro rapidinho no balcão do bar é suficiente pra ir no aniversário da pessoa no fim de semana. O papo fluiu e a gente passou a noite conversando. Trocamos telefones e mantivemos contato pelos dias, semanas e meses a seguir.

A gente começou a fazer vários programas juntos. Parque, restaurante, bar… Ele era um cara romântico, do tipo que mandava rosas colombianas no meu trabalho e organizava viagens de fim de semana.
Não demorou pra eu me apaixonar.

[trilha sonora]

Depois de três meses de relacionamento, a gente começou a transar sem camisinha. O meu critério, como de muitas meninas e mulheres, foi a confiança.

[trilha sonora]

O primeiro sinal que a saúde dele não ia muito bem foi uma tosse persistente, que apareceu meses depois que a gente se conheceu. Ele parou de fumar e, mesmo assim, o sintoma continuava. Eu insistia pra levá-lo ao médico, mas ele não deixou. Ele foi sozinho à consulta e disse que tava com início de pneumonia, causada por uma mistura de cigarro, gripe mal curada e o desgaste físico das nossas viagens. Ele se tratou, mas não adiantou.

[trilha sonora]

Junto com a tosse veio um chiado no peito e uma febre alta. Ele foi pro hospital e acabou internado. Eu saía do trabalho e ia direto visitá-lo. Só que o quadro dele só piorava. Ele foi perdendo peso rapidamente e acabou sendo entubado na UTI. Eu ainda tinha esperança que ele fosse se recuperar, até que a mãe dele me chamou pra conversar na recepção do hospital. 


Ela me disse: “Esses dias aqui sempre teve tão lotado e eu não tive a oportunidade de te contar. Mas, a verdade é que ele tá morrendo de aids”. Ela contou desse jeito, pá pum! 


[trilha sonora]

É difícil explicar o que eu senti quando eu ouvi aquelas palavras, mas eu vou tentar. Em uma fração de tempo muito curta, passou pela minha mente um filme com flashes de toda a minha vida. Vieram lembranças antigas, recentes, numa linha do tempo contínua. As imagens se encaixavam rapidamente, até chegar àquele instante no hospital. Eu tava de pé e a minha canela ficou fria.

De repente, as minhas pernas já não sustentavam o peso do meu corpo. Me deu uma aflição tipo aquela que a gente sente quando anda na montanha-russa. Eu desmaiei. Quando retomei a consciência, tava com um copo de água com açúcar na mão. Um amigo querido tava comigo e perguntou: “Thais, pelo amor de Deus, o que foi? Você tá branca!”. Eu mal conseguia respirar. Mexi a boca e disse só pra ele: “Me tira daqui”.

Tava caindo uma chuva torrencial em São Paulo naquele dia. Eu tentei correr em direção ao carro, mas eu não tinha força. Meu amigo desacelerou o passo pra me acompanhar e foi caminhando de mão dada comigo. Quando eu contei pra ele o que tinha acabado de ouvir, ele fez uma cara de pânico. Pra ele também tudo fazia sentido agora.

[trilha sonora]

No carro, eu chorei. Chorei por ser burra. Chorei por entender que o meu namorado ia morrer mesmo. Chorei porque eu não tava entendendo mais nada. Chorei porque fiquei apavorada pelo meu provável diagnóstico. Logo a notícia se espalhou entre os amigos. Todo mundo ficou em choque. O peso da palavra aids é muito forte. Eu nasci no começo dos anos 80, então eu me lembro da morte do Freddie Mercury, do Cazuza, do Renato Russo. Eu sei muito bem o que é a aids.

Mas jamais imaginei que pudesse acontecer tão perto de mim. Eu fiquei revoltada e perguntava: O que eu fiz de errado? Por que esse castigo? Por que Deus me deu as costas? E eu logo fiz o teste e o resultado, como eu esperava, deu positivo. Quando eu saí do posto de saúde, entrei no meu carro e dei um grito, que com certeza foi ouvido pela rua inteira. Segurei o volante e a minha testa caiu em cima da buzina, mas eu ignorei o barulho. Chorei por alguns minutos, até eu retomar o fôlego, secar o rosto e seguir pro trabalho. Era o primeiro dia da minha nova vida.

[trilha sonora]

Procurei uma psicóloga e, com a ajuda dela, um infectologista. O médico me acalmou. Ele me explicou que aids é uma coisa, HIV é outra. O HIV é o vírus causador da aids. E uma vez que a pessoa é infectada, ela vai ter o vírus pro resto da vida. Só que, embora não tenha cura, tem tratamento. Se a pessoa se tratar, ela não vai ter aids e vai morrer por outra causa.

Nos últimos dias de vida do meu namorado, quase ninguém ia ao hospital. Mas que tipo de pessoa eu seria se o abandonasse no momento que ele mais precisava? Eu tinha que fechar aquele ciclo. Numa sexta-feira à tarde, eu entrei na UTI e peguei na mão dele. Ele tava pesando 35 quilos. Eu disse: “Ontem eu peguei meu exame e deu positivo. Eu só queria que você soubesse que eu te desculpo. Um dia conversaremos sobre isso, mas não nesse plano. Eu te perdoo, vá em paz”. No dia seguinte, ele morreu, aos 40 anos.

[trilha sonora]

Nessa fase, eu usei todo repertório que eu tinha. Ia na terapia, tomava remédio pra dormir, rezava, lia o Evangelho Segundo o Espiritismo e fazia meditações. Por orientação da minha psicóloga, eu dizia pra todo mundo que o resultado tinha dado negativo. Só as minhas irmãs e uma amiga sabiam a verdade.

Eu comecei a fazer o tratamento com antirretrovirais. E eu tomo um comprimido por dia e não tenho nenhum efeito colateral. Por causa do remédio, eu tenho pouquíssimo vírus circulando no corpo. E aí, tanto a doença não evolui quanto eu não passo o HIV pra ninguém, mesmo se eu transar sem camisinha.

Ainda assim, eu tinha muitos medos. Como seria a minha vida dali em diante? Como seria guardar esse segredo pra sempre? Como eu poderia realizar o sonho de casar e ter filhos? O que leva tantas pessoas com HIV a esconder essa condição é o medo do preconceito e a dificuldade de aceitação.

Até os 31 anos de idade, eu nunca tinha feito um exame de HIV na vida. Nenhum ginecologista tinha sugerido que eu fizesse. Eu achava, inocentemente, que era uma coisa muito distante de mim. O meu critério, que hoje eu entendo como absurdo, foi confiar num cara pelo fato de que ele tinha pós-graduação e morava num bairro legal. Nunca me passou pela cabeça pedir exames pro parceiro antes de tirar o preservativo. 

E qual era o meu crime? Transar sem camisinha com o cara de quem eu gostava? Eu nunca vou saber se ele me infectou de propósito. E se ele fez isso, ele é uma pessoa horrível, mas ele já pagou pelo crime dele. Eu de verdade não guardo nenhuma raiva, porque a culpa não foi só dele. Tem a minha parte também. Eu não me cuidei. A partir dessas reflexões, eu assumi a responsabilidade pelo meu erro e me absolvi. A pergunta que eu fazia lá atrás, “por que eu? por que eu?”, aos poucos virou “por que não eu?”.

[trilha sonora]

Aos poucos, eu comecei a me relacionar com outras pessoas. Só que eu não me sentia à vontade de ficar com um cara e já contar que eu tenho o vírus do HIV. Não existia a menor chance de eu infectar alguém, porque, além de eu não ter vírus circulante no meu corpo, eu sempre usava preservativo. Mesmo assim, os poucos homens pra quem eu contei sumiram do mapa. Eu não tenho raiva deles. Eu teria feito a mesma coisa no passado, antes de saber tudo que eu sei hoje.

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Isso mudou quando eu comecei a me relacionar com um colega de trabalho, o Rodrigo. Ele era meu amigo, a gente começou a sair e a coisa foi crescendo. Depois de alguns meses de relacionamento, ele pediu pra tirar o preservativo. Eu recusei e pensei numa estratégia pra falar a verdade. Primeiro, eu pediria pra ele fazer um teste de HIV. Ele veria que o resultado deu negativo e só então eu contaria tudo.

Mas o meu plano não saiu conforme o planejado. Antes que eu sugerisse o exame, a camisinha estourou durante uma transa. Eu fiquei desesperada. Ele falou: “Calma, você toma anticoncepcional e eu não tenho nada”. “Mas eu tenho!”, eu respondi.  E assim, depois de um susto, eu contei tudo que eu tinha ensaiado. Pra minha surpresa, ele me abraçou e disse que não ia cair fora. Disse que tava comigo pra tudo. Eu chorei de alegria e de alívio.

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Nós não só continuamos juntos, como nos casamos e tivemos dois filhos, o João e a Olívia. O Rodrigo e eu somos o que se chama de casal
sorodiferente, em que um é positivo e o outro negativo pra HIV. A gente engravidou pelo método natural e as crianças não têm o vírus, graças ao protocolo de tratamento feito durante a gestação e depois que os bebês nasceram.

Eu só não pude amamentar, porque o meu leite materno tinha uma carga viral. Os médicos tinham me garantido que, se a gente seguisse o tratamento à risca, a probabilidade de que eu passasse o HIV pros bebês era mínima. Mesmo fazendo tudo certinho, eu tinha muito medo. Uma das maiores alegrias da minha vida foi pegar o resultado negativo do João e da Olivia. 

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Com o apoio do meu marido, eu tomei coragem pra contar a minha história pra todo mundo. Eu acredito que o preconceito não é só externo. Ele começa pelas pessoas que têm HIV e se escondem. Eu fui me sentindo na obrigação de esclarecer as bobagens que eu ouvia por aí. Eu não podia ser omissa.

Tipo num happy hour do trabalho em que alguém fez uma piada: “Ah, tá magro, hein? Tá com aids?” E todo mundo riu. Eu me posicionei: “Gente, não é assim. Eu tenho HIV e não tô cadavérica”. Já aconteceu também de alguém não querer beber no meu canudo, por medo de contágio. Se em 2023 a pessoa ainda acha que o HIV se pega pela saliva, eu fico triste não com ela, mas por ela.

A epidemia de aids já tem 40 anos e a gente ainda enfrenta os mesmos preconceitos e tanto desconhecimento. Esses dias eu recebi uma mensagem no Instagram que eu fiquei assustada. A menina contou que comprou um vestido no brechó e tinha uma marca de sangue. Ela queria saber se era possível pegar HIV.

Eu entrei no perfil dela e vi que ela era uma estudante de uma faculdade cara de São Paulo. É uma pessoa jovem com acesso à informação .E eu expliquei: “O HIV se pega pela relação sexual desprotegida, pelo compartilhamento de seringa e por transfusão de sangue. O vírus não sobrevive fora do corpo. Não tem a menor chance de você se infectar por um pingo seco numa roupa”.

Eu faço um trabalho de formiguinha, tentando ampliar o conhecimento sobre o HIV e quebrar o preconceito da sociedade. Eu tento mostrar que, mesmo com o vírus, é possível ser feliz, é possível ter saúde e é possível levar uma vida comum. A minha trajetória é igual a de qualquer outra pessoa: não é perfeita, mas é do jeito que tinha que ser.

[trilha sonora]

Geyze Diniz:
Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

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Emar Batalha em “Quero devolver ao mundo o que o mundo me deu”

Conheça a história de como a resiliência trouxe a vitória, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

17 de Dezembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] 

Emar Batalha: O Instituto Alimentando o Bem existe por causa da minha história de vida. Eu sei o que é passar fome. Eu sei o que é sofrer violência dentro de casa. Eu sei o que é esperar por uma oportunidade. A minha trajetória começou a ser esculpida lá atrás. Se eu não tivesse vivido o que eu vivi, acho que hoje eu não estaria fazendo filantropia.  


[trilha sonora] 


Geyze Diniz: Batalha não está apenas no sobrenome da designer de joias. Emar Batalha lutou muito para ir atrás da vida que sempre quis e hoje busca retribuir a ajuda que recebeu durante a sua trajetória, principalmente através do Instituto Alimentando o Bem, que fundou na pandemia e que se dedica na maior parte do seu tempo para ajudar outras mulheres a terem sua independência. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 


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Emar Batalha: Meus pais se conheceram quando minha mãe tinha 14 anos de idade e o meu pai mais que o dobro da idade dela. Ela morava em Colatina, no interior do Espírito Santo, e trabalhava num posto de gasolina. Ele, fazendeiro na Bahia. Meus avós maternos eram analfabetos e nunca se preocuparam com a educação dos filhos. Então, aquele relacionamento foi visto como um meio pra família sair da pobreza.


O meu pai comprou duas casas, uma colada na outra. Em uma morava minha mãe, eu e meu irmão. Na casa vizinha, morava minha avó com os meus tios. Só que o meu pai levava uma vida dupla. Ele era casado. Todo mundo sabia da existência da minha mãe, inclusive a esposa dele. Em algum momento, ele se separou de corpos dessa primeira mulher, mas continuou casado legalmente.


O meu pai era uma pessoa muito complexa, de gênio difícil e caráter duvidoso. Com 27 anos, a minha mãe cansou de ser a outra e de viver naquela relação abusiva. Apesar de ter sido amante do meu pai por muitos anos, ela tinha os mesmos direitos de esposa. Então, ela entrou com um processo de separação e foi aproveitar a vida.  


[trilha sonora] 


Meu pai não aceitou o término do relacionamento. Ele, que não bebia, começou a beber. O comportamento dele mudou e ele se tornou um homem muito agressivo. Um dia, quando eu tinha apenas 11 anos, eu estava sentada na sala de casa e ele entrou. A minha avó percebeu que ele estava alterado e falou: “Vou preparar um café amargo”. Pra ela, que teve um marido alcoólatra, café amargo curava qualquer bebedeira.  


Quando ela veio com o copo de café, o meu pai sacou uma arma e mirou na minha mãe. A minha mãe tinha apenas 1 metro e meio de altura, mas era muito esperta. Ela enfiou o dedo no gatilho e o tiro bateu na parede. Começou uma luta corporal, e a minha tia tirou uma faca que meu pai tinha na cintura. A gente gritou, um vizinho veio e conseguiu pegar o revólver do meu pai.  


A minha mãe nunca registrou queixa, porque achou que foi um momento de loucura dele. Meses depois, ela viajou pra fazenda pra encontrar meu pai. Naquela época, não tinha celular, a comunicação era diferente. Dez dias depois o meu pai ligou em casa perguntando por ela. A minha avó falou: “Como assim? Ela foi te encontrar e não apareceu até hoje”.


Ele respondeu que tinha dado o dinheiro da pensão e que ela tinha ido embora. Mas dois dias após este telefonema, um capataz da fazenda apareceu lá em casa com o dinheiro. Eu me lembro até hoje, eu estava na sala. A minha avó pegou o telefone, ligou pra advogada da minha mãe e falou: “Pode ir atrás dele, porque ele matou ela”. 


[trilha sonora]


Meu pai foi preso, mas ficou pouco tempo na cadeia. Quando ele saiu, vendeu tudo que tinha e foi embora pro Pará. A gente ficou abandonado à própria sorte e a fome chegou. Na maioria das vezes, a única refeição que tínhamos era na escola. Em casa, minha avó misturava macarrão com farinha pra render e garantir a refeição de todos os netos. Foi uma época muito dura. 


[trilha sonora] 


Aos 14 anos, eu comecei a trabalhar de babá. Os meus tios, que eram um pouco mais velhos, também saíram pra trabalhar. As coisas começaram a melhorar, mas com muita dificuldade. Na adolescência, eu me aproximei da outra família do meu pai, que morava em Vitória.


Hoje eu tenho plena consciência de que eu via neles uma tábua de salvação. A primeira mulher do meu pai, Dona Rosa, teve três filhos homens. O sonho dela era ser mãe de uma menina. Durante o processo de separação dos meus pais, antes da tragédia, o meu pai me levou para morar com a Dona Rosa, escondido da minha mãe.  


Eu fui recebida de braços abertos e fiquei um mês e pouquinho em Vitória. Eu estudei numa escola melhor, eu entrei num shopping center pela primeira vez e descobri o que era um prédio com elevador, com porteiro e piscina. Essas poucas semanas definiram o que eu sou hoje. Aquela era a vida que eu queria, a vida que eu buscaria pra mim. E eu sabia que o primeiro passo que eu deveria dar era através da educação.  


[trilha sonora] 


Fiz um curso técnico de contabilidade e passei no vestibular de ciências contábeis. Meus irmãos de Vitória me ajudaram a pagar as primeiras parcelas da faculdade e eu consegui um ótimo emprego numa indústria de celulose na Bahia. Pra conciliar o trabalho com os estudos, eu viajava quase 400 quilômetros toda semana. Eu ia de ônibus e pra voltar pegava carona na estrada, pois só assim chegaria a tempo.  


Nessa época, eu tinha uma cunhada que vendia joias de prata. Ela me convidou pra vender as peças, em troca de uma comissão. Eu, que sempre fui muito comunicativa, comecei a oferecer as joias dentro da empresa e da faculdade. Em seis meses, percebi que esse negócio era mais rentável do que o meu emprego, e pedi demissão. 


[trilha sonora] 


Eu fui vender as peças de porta em porta, em Colatina. Eu pesava 48 quilos e a minha bolsa pesava 30. Com as joias, eu paguei a minha faculdade e as contas da casa da minha avó. Aos 24 anos, eu engravidei do meu namorado, que era o gatão da cidade. Sabe aquela história, né, do pai rico, filho nobre e neto pobre? Ele era o neto pobre. Era um namoro doentio, marcado por brigas e pelo alcoolismo dele. Só mais tarde, depois de muita terapia, eu entendi que eu estava tentando repetir a trajetória dos meus pais. 


Aos 29 anos, eu não aguentei mais aquele relacionamento abusivo e me separei. Eu já tinha loja em Colatina, e decidi refazer a minha vida em Vitória. Na capital, eu comecei a entender que eu poderia ser mais do que uma vendedora. Eu poderia ser uma designer de joias. Eu já sabia muito sobre o mercado e conhecia as fábricas e os ourives. Eu fiz alguns cursos técnicos de desenho e passei a comprar revistas importadas. As minhas criações fizeram muito sucesso. 


Um dia, a Preta Gil foi pra Vitória fazer um show. A gente fechou uma permuta em joias e ela apareceu em um evento que eu organizei pras clientes. Eu contei pra Preta a minha história de vida e ela me encorajou a ir pro Rio de Janeiro. Com a ajuda dela, eu conheci vários artistas. As minhas joias começaram a aparecer na mídia e nas novelas da Globo. Essas eram as maiores vitrines que existiam, antes das redes sociais. Meu negócio decolou. Eu abri uma loja em São Paulo e outras em Brasília e Salvador.  


[trilha sonora] 


Eu também consegui me refazer do ponto de vista pessoal. Me mudei pra São Paulo, me casei com um homem maravilhoso e tive uma linda filha. A minha vida estava ótima, até que chegou março de 2020.  


[trilha sonora] 


Eu, meu marido e minha filha pegamos Covid bem no comecinho da pandemia. A gente está entre os primeiros 100 casos da doença no Brasil. Depois do período de isolamento, eu viajei pro Guarujá, pra minha casa da praia. Quando cheguei, a minha cozinheira me contou sobre um deslizamento de terra em uma comunidade carente pertinho da minha casa. Mais de 500 pessoas ficaram sem teto e a pandemia estava agravando muito essa situação. Tinha muita gente passando fome.  


Ela sugeriu que a gente fizesse marmitas e eu topei. Como eu já tinha tido covid, fiquei na linha de frente e fui distribuir numa igreja. No primeiro dia, a gente preparou 30 marmitas e apareceram 80 pessoas. No segundo dia, a gente fez 80 refeições e vieram 120 pessoas. Aí, a gente preparou 120 e apareceram 170. Até que eu montei uma cozinha industrial no Perequê, um bairro do Guarujá. Comecei a pedir doações pela internet e, durante a pandemia, a gente chegou a distribuir quase 30 mil marmitas.  


Dessa linda iniciativa acabou nascendo uma ONG: o Instituto Alimentando o Bem, que se dedica ao desenvolvimento territorial através das mulheres. A gente entende que a mulher é o pilar da família e quando bem estruturada consegue apoiar todas as pessoas do seu núcleo. 


O instituto tem várias frentes. A principal delas é a capacitação das mulheres pra que elas possam ter renda assumindo assim o protagonismo de suas vidas. A gente tem uma fábrica de cerâmica, uma de chocolate, uma de costura e uma de vela. Além disso, a gente tem um projeto de moradia pra resolver o problema de quem vive em lugares de risco. O Instituto já realocou 53 famílias que viviam em palafitas, em uma área de mangue e vai realocar mais 190 famílias.  


[trilha sonora] 


Hoje, eu passo 70% do meu tempo batendo na porta dos outros.  


[trilha sonora] 


Mas agora, em vez de oferecer joias de prata, como eu fazia lá em Colatina, eu peço dinheiro para ajudar outras pessoas. Eu ainda trabalho como designer, é minha profissão e minha arte. Mas, nesta área eu já alcancei todos os meus objetivos. O meu grande amor agora é o Instituto.


Eu sinto que eu tenho duas missões com a ONG. Uma é devolver ao mundo o que o mundo me deu. Ao longo da vida, eu recebi muita ajuda de mulheres, e agora eu preciso dar as mesmas oportunidades pra outras mulheres que passam por dificuldades como eu passei. A segunda missão é conscientizar as mulheres que elas precisam olhar pra outras mulheres.


A gente pode começar a fazer isso no nosso entorno. As classes mais favorecidas têm funcionárias em casa. Quanto tempo essa pessoa gasta para chegar ao trabalho? Quem cuida dos filhos dela enquanto ela está fora? São perguntas que a gente tem que fazer e tentar ajudar. O dinheiro é uma ferramenta pra dar prazer e conforto. Eu vendo joias. Quem sou eu pra julgar como as pessoas gastam? Eu me considero capitalista, mas procuro ser uma capitalista consciente. 


[trilha sonora] 


Eu sempre fui ligada à filantropia. Mas, quando eu olho o que eu tinha e a necessidade do mundo, eu vejo que o que eu fazia no passado não era nada. A filantropia, pra gente, tá ligada ao que sobra, ao que não fará diferença para mim. E não é assim. A pandemia me mostrou que não adianta a gente ficar esperando ter tempo e dinheiro sobrando pra ajudar o próximo. A hora de fazer é agora. 


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